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domingo, 13 de março de 2022

Produção editorial - redação de título e orelhas de livro, layout de capa


Livro Nós no pós-pandemia, de Zeca Pontes - oganizador da coletânea



Inércia e rodopios

Tem que ter muita vontade para levantar-se da cama.  É o primeiro grande desafio do dia. Saltar dali para onde e para quê?  E se eu me esquecesse de mim e ficasse aqui inerte, até desmanchar? Caramba, teria dor, fedor, fome, e eu gosto de comer. 

Medo, desprazer, vontades, deleite começam a mostrar que a máquina quer se manter operante.  Que impulso ou desejo é esse de dar continuidade a um ser e estar de projeto mecanicamente azeitado que se cola ao arbítrio consciente de desfalecer, de inércia, de ponto zero?  Recaímos no mesmo grande e repetitivo paradoxo diário e eterno até enquanto dure o viver versus morrer, a permanência versus transformação.  Pode ser que seja a constante tensão que mantém a vida, disseram autores por aqui, a “força dos contrários”.

Enquanto sobre o fio da navalha, dançando tal qual fosse a pista uma borda de cristal, emito sons translúcidos carregando o fardo de um corpo que não quer ir mas vai, porque não tem como não ir, e aí alguém morreu minutos atrás e nem teve tempo de pensar nisso tudo e nada mais. 

E se àquela pergunta como? de quê? a resposta obviamente esperada frustra a regra vigente, uma chave é virada dentro das nossas inauditas certezas aprendidas a penas. Não é proibida morte extra covid? 

É tanta barbaridade no lado debaixo do Equador, que Morin, Freud e Lacan revisitariam suas teorias sobre essa conjunção de pele músculos cabelos nervos cérebro dentes coração. 

Então, menina, vá esticando os cambitos para fora do leito onírico porque tudo tem que ser revisto. A quietude é quimera, o medo constante, a lembrança perene de que não sou uma árvore. Num tempo sem espaço posso mudar de ideia e arcar com as consequências da romântica visita das “forças negativas”.

Dado o que beber a pernilongos, açoitada pelo preço da conta do ar-condicionado, inspirada pela madrinha H esfrego dmae na cara e óculos luvas galochas depois estou pronta para saltos desparafuseantes de bailarina.

Hilda Gullar - Escritora

Redação - texto das orelhas do livro de Márcia Zevoli

 



Das tripas, libertação

O avesso das coisas se apresenta mal feito, mal acabado, terminado às pressas. Dele não esperamos outra situação, o que vemos não nos surpreende.  Não demoramos nosso olhar sobre ele.  Buscamos a rutilância do anverso, da superfície colorida, lisa e simétrica das perfeições pactuadas. Aos meios orgânicos e aos imateriais se dedicam certos tipos de pessoas que nos parecem de outro mundo, com traços de semideuses, tais como médicos, religiosos, psicólogos, filósofos.  O interior dos seres nos assusta, como tudo que desconhecemos mas reconhecemos os impactos que transpassam a fina fronteira e transmutam o conforto da camada bidimensional.

Há situações que nos obrigam a mergulhar no emaranhado das entranhas estranhas aos pares harmônicos que a face de contato dos sentidos nos apresenta. Por dentro percebemos perturbadora assimetria no isolamento de coisas e não-coisas que só farão sentido quando aprendermos a encontrar conexões naturais. Difícil, como amar.  Foi tanto o amor ao amor, que Marcia negligenciou o amor-próprio, a âncora da autoestima necessária para estar no mundo para si e para os outros.

Mais fácil é engolir pílulas estáticas com seu design inofensivo.  Mas a autora é de uma generosidade sem tamanho ao desnovelar a jornada de autoconhecimento que a levou a um estágio de liberdade há muito sufocada nos meandros de seu ser. Dessa sua viagem de resgate e enlevo ela nos deixa visíveis as pontas que assinalam os caminhos. Uma doação que só se desprende naturalmente de pessoas

que conseguem flutuar sob o amparo de leves asas. No seu mergulho, ela fez das tripas libertação.


Hilda Gullar, escritora

sábado, 12 de março de 2022

Redação e design editorial - capa e orelhas de Banalidade fecundas

 


Uma capa de livro que resultou da troca entre autor e designer. Fazer a capa e o texto para as orelhas do livro de  Maria Antonia de Oliveira foi um desafio.  Demorou para  chegarmos ao resultado final.  Ela conhece muito de tudo, texto, design.  Fiz a proposta da imagem da capa absolutamente encantada pela delicadeza e profundidade dos poemas de Maria Antonia.  Nutrição para a alma.  

Pra degustar de joelhos

Você já sentiu saudades de alguém que não conheceu? Você resgata memórias de delícias não vividas quando uma pessoa, de repente, se dá a conhecer? 

Maria Antonia poderia ter sido minha melhor amiga. Vejo-me com ela ainda criança de pés descalços, cabelos ruivos e vestidinhos leves flutuando em redemoinho, espichando os olhos para dentro de troncos de árvores, cavucando buraquinhos de tijolos que esconderiam segredos guardados só para nós. Com ela deveria ter participado da ventura de  inverter a lógica dos adultos em experiências no laboratório de ofícios perguntantes.   

Dá uma vontade louca de tê-la acompanhado milimetricamente vida afora. Ela tem uma capacidade peculiar de amalgamar tons dissonantes, fazer rir de verdades insolúveis, deitar o olhar sobre coisas não ditas e inauditas; de mostrar a engenharia oculta no avesso, na estrutura silenciosa do despertar para verdades sem tamanho. É a artífice semeadora do protagonismo dos pormenores. Das viagens Geograficamente escaláveis, de pé no chão e mochila ou sobre rodas de ar ou água e almofadas de veludo, até os muitos perdidos se encontram para contar histórias deliciosas.  Tanto quanto o perfume que se faz sentir daqueles sabores da cozinha materna, de forno e mesa primordiais. 

As reflexões profundas dessa autora trazem à superfície a memória negada dos dias recheados de curiosidades e belezas fugidias desse cotidiano de viver nosso, que por se pretender eterno rabisca em cadernos alheios simulacros do desistir. 

Beleza é a palavra-chave do texto. Curiosidade a chave-mestra de um macrocosmo desdobrado nos mínimos plurais.  Singular e madura reflexão em que tudo importa, tudo se conecta. A cada assunto se soma um ponto no viver que não se cansa de nos surpreender. É uma iguaria preciosa, de se comer rezando.

Hilda Gullar -  escritora 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Surge o heterônimo Hilda Gullar nas orelhas do livro Bendito fruto

 


Muitos escritores usam heterônimos. O mais famoso e, para mim, o mais ilustre, é Fernando Pessoa, com seus Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Bernardo Soares que tem nos encantado em obras ímpares.

Sem a pretensão de imitar o mestre, Hilda Gullar, um dos meus heterônimos desde quando não havia internet, passou a se exibir nas orelhas na coletânea Bendito Fruto do Nosso Ventre: Dores e delícias do maternar, da Editora Ponto Z. 

Por quê? Acho que escrever sobre escritos de um autor exige um cuidado na apreciação bem diferente daquele que dedicamos aos nossos próprios textos.  Outra história, outra persona, livre das nossas idiossincrasias. O texto crítico deve ser absorvido em profundade, de olhos limpos.

Hilda Gullar tomou enorme gosto pela coisa e não parou até hoje. Está gestando um livro sobre esse fazer literário de características bem marcadas. 

Hilda, de Hilda Hilst, e Gullar, de Ferreira Gullar, meus guias de cabeça e coração.



Texto das orelhas


O amor além da tribo

Às vezes maternar não flui como sonhávamos e corremos o rio em desabalada carreira e com pouco fôlego, ou nos enroscamos nos galhos secos das beiradas. É certo que nos assustamos com a lonjura das margens, com a velocidade da descida e com os braços repentina-mente curtos. Dos autores desta coletânea, a maioria conta histórias e poetiza realidades de mães e pais que beberam dessas mesmas águas. Foram aprendendo conforme o desafio que o momento impunha, no improviso, entre risos e lágrimas. Seguiram se agarrando em qualquer raiz ou coisa que servisse como boia, antes que conseguissem construir o porto seguro da experiência e propiciar a seus rebentos toda a carga de amor e cuidados devidos, conforme os valores introjetados pela nossa cultura. Fomos moldados para colocar o amor maternal acima de todos os amores terrenos e, se assim não for, independentemente das circunstâncias, a marginalização e o expurgo serão as faces do veredicto da civilização contemporânea. Dos filhos também são esperadas doses cavalares de amor, zelo e gratidão, mais, pelo menos e sobretudo enquanto não se tornam pais. 

Não foi sempre assim. A história e a antropologia nos contam da proliferação de filhos-moeda, que vieram ao seio familiar com a 

função de garantir braços fortes para a lavoura, muitas vezes destinatários de tratamento animalesco. Outras atrocidades, assim julgadas por nós, eram cometidas por tribos indígenas arcaicas, como a dos índios Tapirapé, cujas mulheres matavam todos os seus filhos após o terceiro, devido a crenças  religiosas. 

O infanticídio, fato comum entre diversos grupos humanos, põe a sete palmos o aclamado instinto materno e revela a complexidade e o poder da endoculturação. Também o amor filial é desnaturado em estudos que apontam outros rituais de povos antigos, como os esquimós, que conduziam os seus velhos pais às planícies geladas para serem devorados pelos ursos. 

Afortunadamente, no estágio do processo civilizatório em que nos encontramos, barbáries dessa pecha são desvios da natureza das coisas e pessoas, que uma cultura de leis e ordens escritas cuida para que sejam mínimos. Maternal ou filial, o amor que ronda as vidas  das pessoas e dos personagens é espontâneo e desmedido, mesmo no caso de um filho lobisomem e sua devotada mãe, que lhe faz companhia ao devorar o fígado ainda quente de sua vítima. Horripilante ou belíssimo, diga você depois de ler o conto que está aqui, nesta coletânea. Surpreenda-se com os outros tantos.


Hilda Gullar

Escritora