Muitos escritores usam heterônimos. O mais famoso e, para mim, o mais ilustre, é Fernando Pessoa, com seus Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Bernardo Soares que tem nos encantado em obras ímpares.
Sem a pretensão de imitar o mestre, Hilda Gullar, um dos meus heterônimos desde quando não havia internet, passou a se exibir nas orelhas na coletânea Bendito Fruto do Nosso Ventre: Dores e delícias do maternar, da Editora Ponto Z.
Por quê? Acho que escrever sobre escritos de um autor exige um cuidado na apreciação bem diferente daquele que dedicamos aos nossos próprios textos. Outra história, outra persona, livre das nossas idiossincrasias. O texto crítico deve ser absorvido em profundade, de olhos limpos.
Hilda Gullar tomou enorme gosto pela coisa e não parou até hoje. Está gestando um livro sobre esse fazer literário de características bem marcadas.
Hilda, de Hilda Hilst, e Gullar, de Ferreira Gullar, meus guias de cabeça e coração.
Texto das orelhas
O amor além da tribo
Às vezes maternar não flui como sonhávamos e corremos o rio em desabalada carreira e com pouco fôlego, ou nos enroscamos nos galhos secos das beiradas. É certo que nos assustamos com a lonjura das margens, com a velocidade da descida e com os braços repentina-mente curtos. Dos autores desta coletânea, a maioria conta histórias e poetiza realidades de mães e pais que beberam dessas mesmas águas. Foram aprendendo conforme o desafio que o momento impunha, no improviso, entre risos e lágrimas. Seguiram se agarrando em qualquer raiz ou coisa que servisse como boia, antes que conseguissem construir o porto seguro da experiência e propiciar a seus rebentos toda a carga de amor e cuidados devidos, conforme os valores introjetados pela nossa cultura. Fomos moldados para colocar o amor maternal acima de todos os amores terrenos e, se assim não for, independentemente das circunstâncias, a marginalização e o expurgo serão as faces do veredicto da civilização contemporânea. Dos filhos também são esperadas doses cavalares de amor, zelo e gratidão, mais, pelo menos e sobretudo enquanto não se tornam pais.
Não foi sempre assim. A história e a antropologia nos contam da proliferação de filhos-moeda, que vieram ao seio familiar com a
função de garantir braços fortes para a lavoura, muitas vezes destinatários de tratamento animalesco. Outras atrocidades, assim julgadas por nós, eram cometidas por tribos indígenas arcaicas, como a dos índios Tapirapé, cujas mulheres matavam todos os seus filhos após o terceiro, devido a crenças religiosas.
O infanticídio, fato comum entre diversos grupos humanos, põe a sete palmos o aclamado instinto materno e revela a complexidade e o poder da endoculturação. Também o amor filial é desnaturado em estudos que apontam outros rituais de povos antigos, como os esquimós, que conduziam os seus velhos pais às planícies geladas para serem devorados pelos ursos.
Afortunadamente, no estágio do processo civilizatório em que nos encontramos, barbáries dessa pecha são desvios da natureza das coisas e pessoas, que uma cultura de leis e ordens escritas cuida para que sejam mínimos. Maternal ou filial, o amor que ronda as vidas das pessoas e dos personagens é espontâneo e desmedido, mesmo no caso de um filho lobisomem e sua devotada mãe, que lhe faz companhia ao devorar o fígado ainda quente de sua vítima. Horripilante ou belíssimo, diga você depois de ler o conto que está aqui, nesta coletânea. Surpreenda-se com os outros tantos.
Hilda Gullar
Escritora
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