Artigo meu, publicado na coluna Opinião,página 2, Caderno 1, do jornal Diário da Região, em 15 de agosto de 2020.
Pandemia de desacertos
“Thammy nunca será pai porque não é capaz de fazer um filho”. “Ela não é homem, não pode ser pai”. “Tammy desmerece os homens”. Ou algo assim. Muitos outros assins foram os vitupérios proferidos em repúdio à participação do ator Thammi Miranda, indivíduo transgênero, junto ao filho, na campanha publicitária “Meu Pai Presente #”, da Natura. A campanha institucional foi desenvolvida pela agência DPZ&T para posicionamento da marca em relação à diversidade, enfocando as diversas formas de ser pai, para veiculação no período sazonal Dia dos Pais. A transfobia rendeu raios e trovoadas de inconformismos inglórios sobre esse pedaço da terra encharcado de dores e desesperanças por todos os lados. Como se a pandemia de desacertos fosse um real imaginário e tivéssemos em um nível de desenvolvimento humano e cultural tal em que caberia uma discussão secular sobre um assunto prioritário tal como o sexo dos anjos. Mas a pátria enlameada sob coturnos e pés descalços aceita tudo em prol do devaneio causado pelas pílulas de pão e circo que cegam a visão para o que importa.
A publicidade não perde oportunidade e nem cria nada. Bebe
em todas as fontes experimentadas e fundamentadas pelas ciências e faz
Aristóteles virar no túmulo com o uso da sua retórica persuasiva. Atrevida, usa
e desenvolve imagens e metáforas com a realidade, quando não sob pontos de
vista inesperados sobre o que é pensamento corrente, às vezes com abordagens
polêmicas, pseudoinovadoras em conteúdo e forma. Afinal, se não chamar a atenção, sua meta
primeira, não irá gerar interesse, desejo e levar à ação pretendida pelo
anunciante. É uma roda bem azeitada, que funciona. Tanto que as ações da Natura
somaram uma alta de 10,09% nos dois últimos dias de julho, 6,73% no dia 29, a
maior do Ibovespa.
A questão de paternar ou maternar não é nova e continua bem
intrincada. As leis dizem uma coisa, às vezes outra, dependendo de quem julga,
e muitos corações sangram na areia quente das conveniências.
Despretensiosamente, vejamos umas coisinhas sobre um assunto seríssimo,
abordado e dissecado em milhares de páginas por doutos da área. Thammy nunca
será pai porque não pode ter um filho, ou seja, não tem sementinha para
germinar um novo ser. Isso quer dizer que qualquer outra pessoa estéril
fisicamente, incapacitada biologicamente, se adotar uma criança nunca vai ser
pai, ou, melhor, nunca poderá ser considerado pai pela sociedade? Se a
determinação de paternidade é alicerçada somente no fator biológico de
reprodução, então significa também que uma mãe de criação não é mãe. Uma
criança adotada por um casal não terá, jamais, pai e ou mãe. Se um indivíduo do
sexo masculino, capaz de fertilização nos moldes homem-mulher, faz o serviço e
depois desaparece, ele ainda será pai? Um doador coloca seu sêmen
tranquilamente num tubo de ensaio porque nunca será considerado e
responsabilizado como pai. Porque pai é
aquele que cria, educa, ama, protege, sustenta, provê. Epa, contradição à vista.
Autores nacionais e de outras terras já derramaram os
saberes e sentimentos de quem se vê reinventando os papéis de pai e de mãe numa
coletânea em verso e prosa, sob o selo da Editora Ponto Z, disponibilizada para
os autores em maio deste ano, mas ainda não lançada. Sob o título “Bendito
fruto do nosso ventre: dores e delicias de maternar”, reconstroem os
significados de “pai” e de “mãe” e tocam fundo na ferida aberta por
preconceitos e estereótipos. Pena que Thammy se atrasou. Teria seu espaço
garantido lá.
Lucimar Canteiro
Publicitária, Rio Preto
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