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segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Capa e orelhas de livro "Cratera antes da queda", de Roselis Batistar

 



Turbulências e ancoragens

Mergulhar fundo ou nadar na superfície? Se imersos totalmente, o mundo estranho nos abraça com sua quietude, o perigo se dilui com o tempo dormente e podemos esquecer que não há onde buscar fôlego extra. Flutuando acima da densa profundidade nos debatemos entre os rasgos de luz da superfície a cada esforço para não nos perdemos numa imensidão assustadora, porque desconhecida. E pode faltar ar.

Respire a plenos pulmões porque o mergulho é longo e profundo. Os poemas de Roselis nos conduzem às entranhas das suas memórias de um mundo perfeito, em que prevalecem o bom, o justo, o fraterno, o amor paterno-filial abundante. Na imersão há um distanciamento das dores como forma de proteção, mas as figuras que se mostram são fortes o bastante para permitirem que na nossa intrusão às suas reminiscências vislumbremos quadros instantâneos fora do roteiro escrito pela alma carregada de amor ao amor.

O leitor viajante elevado à flor d´ água pode então admirar a paisagem pelas janelas abertas pela capitã transparente. Enlevado pela visita presencial dos verdes aromas e azuis ares atravessa a vidraça e percebe que já se faz acompanhar de esferas, ciclos, ressonâncias do eu justo e ordenado da autora projetados agora na sua própria história.

Ela balança os fios dourados de sua sensibilidade de ver e provar as fronteiras entre o mundo herdado do amor familiar e o caos que acena do outro lado da cerca. O enigma do desconhecido, do além de nós, do estrangeiro no qual executamos sem opção o vaticínio da vida, que nos assombra com sua desordem, é visitado pela autora à sua maneira heroica e estoica de tratar de feridas abertas. Mesmo diante do derramar derradeiro de magmas seu figurar poético cutuca paradoxos, ora com balsâmica sensibilidade, ora instigando a fera que ronda. Com ironia fina desafia dogmas e dilacera corações duros de bestas seculares.

Estamos todos nos versos desse poetizar engajado com nossas verdades. Estamos todos emparedados pelas ambiguidades que nos confundem e pela entropia natural que puxa a corda para outro lado.  Como na inexorável chaga que abre o amor não inocente, a paixão de olhos abertos, a mesclagem de corpos e almas alertas, na entrega sem senões, que antecipa nossa visita à cratera dantes navegada. As perdas, as penosas e incontornáveis perdas. Os ocos frios deixados pelas dores escaldantes que nos sustentarão como pneumáticos em nova queda das escarpas das montanhas de cumes invisíveis que erguemos ao longo dos voos de nossa resistência.

Talvez sejam ensaios para a liberdade. De repente surgem asas durante uma das quedas e conseguimos uma visão panorâmica do distanciamento entre os sustentáculos da dicotomia, talvez um vácuo esteja ali, um portal, que num instante a mais como brinde nos permita a liberdade de ser. A autora encontrou um remanso em meio à turbulência. Magnânima, ela nos indica ancoragens distantes do desassossego das margens.

 

Hilda Gullar, escritora


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