Texto para as orelhas
Da barriga, coração
O amor está arraigado em nossas expectativas de felicidade
como uma condição inerente. É amalgamado à dependência da aceitação alheia dos
recursos que temos como humanos. Algumas idiossincrasias são toleráveis, se
estivermos situados num patamar em que o ar rarefeito passa a ser admirado e
cobiçado. Alguns recebem alegres pechas de artista, criativo, doidinho,
especial. É diametralmente oposto à premiação social com o bilhete da
felicidade quando a evidência da síndrome de Down se escancara nos gestos
comedidos e olhares oblíquos das pessoas que têm o primeiro contato com o
recém-nascido. Não tem como disfarçar. Não tem como dourar a pílula ofertada
pela esfinge. Como sugere o título do livro, os pais forçosamente entram numa
loja de cristais finos forjados com fogo de dragão.
O medo inicial dos pais, ao saberem da condição do filho que
acabaram de trazer ao mundo, deve-se à ciência de toda a carga de sentimentos e
julgamentos da qual serão alvo. É muito
difícil para todos nós, humanos pais ou não, aceitar um outro deficiente. É uma
sentença. Se é doente, pode ter cura. Deficiência T21, não. Aí, vemos aqui,
surge a força draconiana do amor e inicia-se um vôo vertiginoso e íngreme ao
céu e inferno das limitações. Esses pais se transformam em seres super-humanos.
Não se pode dizer se o amor desmedido dos pais molda a delicadeza, a maneira
afetuosa e doce dos Down, observável na maioria dos casos. Eles são
extremamente amorosos porque muito amados, ou muito amados porque amorosos?
Não, não se sabe ainda por que a síndrome acontece. O único
remédio é o amor, brotado de uma fonte generosa, mas só visível e acessada por
pessoas capazes de produzir felicidade fora das convenções. O exercício
ininterrupto do doar-se, do amar sem descanso, aniquila fraquezas. E assim
esses pais são jorges abrigam-se seguros na barriga do dragão.
Hilda Gullar, escritora
Copywriting para apresentação do projeto a autores
Delicadeza e força dos afetos no mundo Down
Do “Por que comigo” ao “Por que não comigo?” há todo um
rosário de lágrimas desfiado pelo inconformismo, pela rejeição e vitimização. É
doloroso para os pais receberem a notícia de que geraram um filho com síndrome
de Down. Na maioria das vezes não estão preparados para revirarem suas vidas.
Há o normal e sacrossanto medo do desconhecido. O que irão enfrentar com um
filho Down? O preconceito, filho dos equívocos e da obsolescência de
informações, não os deixa ver que terão um filho, para amar e cuidar, que é um
indivíduo e não uma réplica de um ser seriado. O filho terá suas próprias potencialidades,
gostos, talentos, personalidade e temperamento. O bebê deverá ser visto como o
filho. A síndrome de Down é apenas uma parte de quem ele é.
A criança será fruto do meio que lhes propiciarem, terá sua
personalidade, seus diferenciais, seus talentos, potenciais, temperamento,
sentimentos, sonhos e tudo mais que a tornará uma pessoa única. A T-21 é parte
dela, e não ela. Os pais que abraçam o
desafio embarcarão num ciclone de aprendizagem e aplicação dos saberes sem
intervalo. Conhecerão mais profundamente
as pessoas. Estarão capacitados para distinguir com perfeição um olhar de
desdém de um de compaixão, de um sorriso complacente de um convite para uma
relação sem barreiras. Terão que se convencer de que não são culpados, que não
fizeram nada errado. Com o tempo, desenvolverão a capacidade de demonstrar que
estão felizes com seu filho, enfim e cada vez mais.
Resumida assim essa vivência, parece que o final feliz é
rápido e não falha. Nem todos saem dessas fases sem grandes traumas. Cada um é
cada um, inclusive indivíduos com T-21, que não é uma doença e, portanto, não
tem cura. É uma longa jornada em que o aprendizado constante faz dos pais,
familiares, professores e amigos pessoas que desenvolvem capacidades
diferenciadas, necessárias para conviver, cuidar e manter o amor acima de tudo.
Queremos ouvir suas histórias, seus tropeços, seus acertos,
sua visão desse mundo moldado por um amor exigente. Suas descobertas farão um bem enorme para as
pessoas que podem um dia se surpreenderem nesse mundo tão especial e
desconhecido na sua essência. Porque veem-se os movimentos incessantes da luta,
mas o que vai dentro dos corações e mentes dos pais, da sua batalha para vencer
a luta com seus dragões internos, não transparece. Supomos que os dentes são muitos
e o sangue farto. Mas as essências das flores do caminho são daquelas de se
guardar nos mais raros frascos.
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